terça-feira, 4 de novembro de 2014

A Rainha Sou Eu


Vitória.

Por si só o nome revela a força daquela que o exibe em condições únicas. Afinal foi rainha “por não existir mais ninguém”. E nós, anos depois, agradecemos esse vazio. Vitória de Inglaterra não se limitou a ser rainha. Não se limitou, sequer, a ser mulher.
 
Numa altura em que o feminismo ganha estatuto é particularmente interessante observar uma mulher que, não deixando a obstinação de lado, governou por anos e anos sem nunca vacilar. sessenta anos exactamente. A par com ilustres nomes da sociedade mais antigas ou mais recentes(recordemos as irmãs Bronte, George Eliot e recuando até encontrar uma Jane Austen sedenta de inovação), Vitória nunca deixou as suas obrigações por cumprir. Elevou a noção de familia a um novo patamar mostrando ao mundo que uma mulher pode ser mãe, esposa e governante sem descurar qualquer um dos papéis. E não é isso que ainda hoje se discute? Que ainda hoje serve de batuta para as vidas agitadas da sociedade actual? Entristece-me que Rainhas e Escritoras, Pintoras e Cientistas tenham descoberto aquilo que ainda é desconhecido à mulher fechada nas suas noções de escolha com medo de vacilar e de falhar apenas porque não é capaz de tudo. De não ter direito a tudo. E a nada, até. Direito à escolha acima de tudo.
Cruzei-me com um livro bem português sobre uma rainha bem inglesa. Vitória de Inglaterra parece ser um hino não só à mulher que governou por sessenta anos aquele país como uma prova da coragem de todas as mulheres ao longo dos séculos. Quem não recorda Isabel, a Rainha Virgem que levou Inglaterra aos limites da coragem e honra? Ou D. Isabel, mulher de D. Dinis, que não era Santa mas diplomata e confidente apontando com sensatez o caminho daquele que era, em boa verdade, o legítimo rei de Portugal? Reconheço, com orgulho de mulher, a quantidade de excelentes mentoras do progresso feminino. Quando ainda a palavra feminismo não existia. Lutaram, amaram, sofreram e sempre abriram caminho por entre as cortes, as sociedades e as muitas teorias de que ser mulher é ser-se fraco.
Isabel Machado vem escrever-nos que não foi assim com Vitória nem foi assim com todas as mulheres que cruzaram o mundo e os seus mundos. Sem elas seríamos vazio. Sem a doçura, a compustura e, por vezes, a maldade não existiria futuro.
Caminhamos através das vaidades da juventude, o amor (pois só houve um sufiecientemente forte para fazer vacilar a soberana), a familia e o poder. Desde que Vitória se torna Sua Majestade até ao seu ultimo suspiro somos invadidos por arrepios, lágrimas e risos cortantes. Alegra-nos o dia ler aquelas tão sábias palavras. Como pode uma mulher só albergar tanto da vida? Uma mulher apaixonada pela vida, pelos sentimentos, pelo ser-se humano. Vitória levou deste mundo inúmeras aprendizagens. E nós com ela aprendemos a ser mais e melhores. A ansiar por tudo o que a vida nos possibilita sem fechar os olhos a nada. Nem mesmo ao sofrimento. Porque também ele faz parte da vida.
Vitória de Inglaterraé uma bonita homenagem à Rainha. Mas, acima de tudo, é uma homenagem a todas as mulheres que, como a própria autora, se sacrificam todos os dias para dar um pouco de si aos outros. Orgulho-me de escrever estas linhas imaginando que sem elas jamais as poderia escrever e saborear. Afinal ser Mulher é importante. Existe beleza e delicio-me em saber que, naquele século, já era belo ser-se Mulher e ter direito à escolha. Ter direito a ser tudo. Ser Rainha, Imperadora, Mãe, Mulher, Esposa. Direito a ser-se Mulher.

Caty.

 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Pensar os Livros.


 
Tenho andado com algumas questões relativamente ao que me propus fazer aqui. Resolvi escrever um texto que me ajudasse a pensar sobre a Literatura e sobre a Arte enquanto forma de expressão.

A arte move-nos e rodeia-nos. Seja qual for o tema, a forma, a verdade é que somos, todos os dias, transportados por essa forma de comunicação. O que é, de facto, estranho uma vez que não existe uma definição de Arte. Ou seja: haverá um limite para a Arte? Precisará de um limite?

Estas questões foram-me colocadas aquando da leitura da biografia de Virginia Woolf. Apercebi-me que é possível sermos críticos em relação ao que lemos mas não é isso que define a escrita. O melhor exemplo é o facto de Woolf não ter simpatizado nunca com James Joyce e a sua obra Ulisses e esta ser uma obra-considerada-prima do Século XX. Então, questiono-me: como pode um escritor julgar outro? O que é, afinal, boa literatura? Qual o critério?

Posso, evidentemente, tratar todo este tema através das inúmeras teorias da literatura. Posso seguir a lógica de Aristóteles e abandonar todos os textos que não sigam as suas regras. Posso deixar que Burke me influencie. Ou posso esquecer todos eles e deixar a opinião pública julgar todas as obras literárias do mundo. Mas será viável deixar nas mãos do "gosto pessoal" a história da literatura? Talvez ficássemos à beira da anarquia. Talvez deixasse, a certo ponto, de existir Literatura. Mas não é o que temos actualmente? Os livros são criados e aceites por uma sociedade sem princípios artísticos viáveis. A opinião pública das massas passou a ser o único critério para as editoras. Se antes era necessário qualquer coisa de intelectual, de sofrido (nem que fosse o tal sofrimento da página em branco que levou tantos escritores à loucura), hoje é apenas necessário que se obrigue o leitor a esquecer a realidade e embrenhar-se numa qualquer ficção cheia de lugares comuns e falsas verdades. Pior: o leitor escolhe essa facilidade como se fosse um mal menor já que é "obrigado" a ler.

À pergunta "o que procuras num livro?" saberia responder sem vacilar: procuro-me. Mas será essa a vontade dos outros? Daqueles que se deixam guiar por uma literatura infantil e cinzenta, sem preocupações relevantes para o avanço da mentalidade e da própria sociedade? Parece-me que já ninguém lê para ouvir os ensinamentos de um Outro. Para conhecer o mundo e conhecer-se a si próprio. Lêem porque faz bem ao Ego. Lêem porque não encontram nada de melhor para fazer. Já ninguém diz ao ler: nunca tinha pensado nisto. Porque não há nada de novo. Nada do que é dito nas páginas dos livros actuais é, de facto, novidade. Será medo de encarar a vida? A verdade? O nosso "Eu"? Será isso que nos faz procurar levezas e simplicidades? O medo de olhar para dentro e nos reconhecermos não no herói mas no vilão? Woolf soube preencher o imaginário dos seus leitores com personagens reais. O leitor e a personagem passam a ser um só. Identificam-se um com o outro. Não há heróis. Não há vilões. Há pessoas. Há realidades escondidas no dia-a-dia. Mas já ninguém quer saber de Virginia Woolf. Já ninguém quer saber de Tólstoi, sequer, a menos que seja para preencher um imaginário descuidado. Como quando somos crianças e queremos ser uma Branca de Neve ou uma Cinderela. (Oh, como seria bem vindo um comentário a dizer como estou errada. Que, afinal, Woolf ainda faz parte dos nossos dias. Que Jane Austen ainda é uma realidade…)

Pergunto-me qual o segredo do sucesso dessas histórias sobre vampiros, por exemplo. Será a perspectiva da imortalidade? Será o tal "amor impossível e para a eternidade"? Se assim é por que razão está Bram Stoker tão esquecido? Não é ele o autor de um dos maiores romances de sempre? Um amor que não é para sempre mas para a eternidade? Encontrei em "Drácula" toda a Humanidade. E, talvez por isso, não seja lido com a mesma facilidade de um outro qualquer livro de vampiros simpáticos e pacíficos. Novamente, o medo. O medo de olharmos para a Humanidade e repararmos nos "vampiros" sedentos de sofrimento e vingança que não esquecem nem perdoam. O medo de sermos menos do que aquilo que julgamos ser.

E, se não é o medo, será a preguiça? Como poderá o cinema ser uma arte tão bem trabalhada e cativante e a Literatura ficar tão esquecida? Não começou esse mesmo cinema por ser um story-telling? Não é o cinema um contar infindável de histórias? Algumas até bastante relevantes como obras principais do desenvolvimento humano? Então sugiro que o cinema possa nutrir uma vantagem ainda não conquistada pela Literatura: a imagem. Para mim não há diferença. Mas consigo compreender a facilidade da imagem visualizada em detrimento da imagem contada e imaginada. Ler é ser-se cego. Estou consciente desse facto e apraz-me sabê-lo. O autor sempre me sussurrou ao ouvido aquilo que a imaginação lhe ditava e eu, de olhos fechados e mente aberta, criei sempre o meu próprio quadro, a minha própria imagem. O cinema dá-nos menos possibilidades. A única visão é a do realizador. Todas as outras são deixadas de fora e o espectador não pode interferir.

A preguiça de fazermos, em conjunto com o autor, o seu livro é demasiado grande para a nossa sociedade. Entristece-me sabê-lo. Saber que o mundo vive de momentos criados pela impassibilidade. Que já ninguém se dá ao trabalho de dar ao seu mundo novos mundos. Estamos estagnados. Estamos cada vez mais vazios. Estamos cada vez menos humanos necessitados de evoluir. De conhecer. De criar. A Arte não tem, de facto, limites. Nem o artista. Somente a Humanidade.


Caty.


quinta-feira, 20 de março de 2014

"August: Osage County"


Este filme, adaptado de uma consagrada obra da Broadway poderia, como muitos outros, ser um falhanço. A julgar pelos Óscares da Academia de Hollywood, os Globos de Ouro, os Bafta, os SAG Awards, entre outros, seria de esperar um total falhanço de representação, argumento e realização. Mas não.
Começa bem: Clooney é o produtor. John Wells o realizador. Chamaram o verdadeiro autor da peça (Tracy Letts) para a adaptar ao cinema. E, por fim, esperando uma agitação que salvaria o ambiente, chamaram Meryl Streep. O resultado: um grande filme.
O tema não é diferente de tantos outros. Problemas familiares. Mas, desta vez, ao jeito de comédia negra. Doença, suicídio, juventude problemática, traições, divórcios. As personagens já existem antes do filme começar, o que dá ao respeitoso argumentista um toque de genialidade. No fim do filme elas continuam a existir e sem finais felizes ou infelizes.
Dou uma especial atenção aos primeiros minutos de filme. Começa com T.S. Eliott só porque é preciso um poeta para abrir o espectáculo que se segue: “A vida é demasiado longa”. Quem o cita é Bev, o homem cansado e calmo que desaparece para um desastroso suicídio logo após nos cumprimentar. Conta uma história a uma empregada que terá sempre um papel calmo e importante durante todo o filme e, em especial, no fim. Mas é Violet, ou Meryl Streep, quem rouba o protagonismo (nesta e em todas as outras cenas). Frágil, cruel, má, sarcástica acabamos a sentir-nos constrangidos com tanta loucura e ódio ao mundo. A sua figura pálida, os cabelos curtos, o andar descoordenado relembram uns anteriores filmes como One True Thing ou Sophie’s Choice. Em todos eles vemos majestade. Neste vemos a representação levada ao extremo. Abro um parêntesis para dizer uma verdade que me anda a balouçar na mente desde que vi o filme: será possível que tenha escapado à Academia a impressionante prestação desta Dama do Cinema? Será possível que, em tantos prémios, Meryl Streep tenha ficado sempre atrás de uma interpretação que, ainda que maravilhosamente bem conseguida por parte de Cate Blanchet em Blue Jasmine, em nada se equipara a este excelente trabalho? Bem sei que Mrs. Streep já tem anos de nomeações e consagrações mas será isso motivo para a  esquecer e fechar os olhos ao seu talento natural para compreender as suas personagens?
Posso alertar-vos para o facto de existirem outras personagens. E todas elas são fortes. Existem as irmãs reprimidas, Karen e Ivy (Juliette Lewis e Julianne Nicholson), conscientes da sua falta de carinho por parte da mãe, maridos adúlteros, Bill (Ewan McGregor), que lutam para manter a ordem mental e moral de uma filha de quase quinze anos, Jean (Abigail Breslin), que pretende destruir a sua visão ingénua do mundo, existem namorados estranhos, Steve (Dermot Mulroney) e tios gentis casados com tias que erraram no passado e continuam a errar por se adorarem ouvir, Charlie e Mattie Fae (Chris Cooper e Margo Martindale). Depois existe Barbara: Julia Roberts. A filha que é demasiado parecida com a mãe para o perceber e demasiado crítica para entender a vida.
Talvez o filme tenha ganho por ter Meryl Streep e Julia Roberts como mãe e filha. A épica cena em que Roberts se atira a Streep tem tanto de cómica como de dramática. Mas deixem-me que vos diga: é aquele jantar de luto por um pai “desaparecido” a cena que dá ao filme um toque de genialidade macabra. A qualidade dos diálogos, a realização bem coordenada e inteligente e as interpretações reais daqueles actores fazem desses minutos o momento mais empolgante de todo o filme. O elenco está todo reunido e telefones tocam, pessoas dão graças e divagam, pessoas distraem-se. A tipica comédia negra, o humor subtil e disparatado. A vida tal como ela é: um excelente filme!

terça-feira, 4 de março de 2014

Servidão Humana, por Somerset Maugham


 
O título original é Of Human Bondage. Que podemos traduzir por Servidão Humana. Este é um daqueles casos em que o título, por si só, define todo o livro.
Confesso que tinha uma grande expectativa relativamente a este livro. E não me refiro ao espectacular trabalho da Asa que me “obrigou” a comprá-lo mal olhei para aquela capa tão bonita e tão arrojada. Mesmo que concluísse que este seria um livro para nunca mais ler, pelo menos, ficaria bem na estante.
De volta à história. Esta narrativa pretende ser o “Era uma vez” de Philip Carey. Demorei algum tempo até perceber o fundo desta personagem. Considerei-o, por fim, uma espécie de Herói (caso seja possível definir assim as personagens neste controverso romance). Defino-o assim porque tanto o odiei como o compreendi. Ele é arrogante, tímido, carente e indeciso. Desde o momento em que somos introduzidos na sua vida que o sabemos um pouco complexado. Tem um pé aleijado e toda a sua infância e adolescência é conduzida através desse problema. Como se fosse o pé a definir-lhe a personalidade e as acções. Este é um livro sobre a vida e sobre o “ser humano”. Existem personagens indecisas, boas, más, sossegadas, mesquinhas. A própria humanidade de Philip é questionada (e, atrevo-me a dizer, definida) pelo leitor que, como na vida real, o adora e o detesta. Reconhecemos um pouco de D. H. Lawrence em Filhos e Amantes com a realidade sempre a saltitar na nossa frente: simples e problemática.
O primeiro passo é conhecermos o seu mundo: é órfão e foi criado por um tio religioso e uma tia que merece uma certa atenção por ser simpática e moralista ao mesmo tempo. Portanto, é fácil concluir que tudo na sua ainda curta vida merece a atenção da fé, da moral, do “ser bom”. Talvez aqui, Somerset se tenha excedido (e digo-o no bom sentido: aquilo que nos acontece quando somos crianças marca-nos para sempre). Todos nós sofremos alguma humilhação na escola. Por mais insignificante que seja todos nós coramos por algum motivo. E Philip corou, chorou e nunca mais esqueceu o episódio. Quebro a rotina de contar a história por existir um momento importante que nos irá acompanhar e a Philip até ao fim do romance: o momento em que o jovem, confuso e impregnado em teorias religiosas, descobre que Deus não existe. Poderia não ter qualquer importância mas esta é a grande transformação da personagem. Se antes resolveria a sua vida com uma carreira religiosa e cega, agora não consegue evitar as necessidades da alma: a pintura e o conhecer o mundo. O antes e depois da personalidade de Philip surge com uma primeira servidão: a servidão a Deus. No entanto, esta é racional, deixando que a sua fé seja permanentemente abalada por questões lógicas e práticas: ao pedir a Deus que lhe cure o pé, através de rezas, e não vendo qualquer mudança da parte daquele a quem devota horas e esforço, decide que ele não existe
Surge-nos, finalmente, e confesso que após uma enorme espera, Mildred. Uma personagem com demasiada relevância para a sua personalidade. E questionamo-nos: como é possível que uma pessoa tão pequena tenha tanta influência na vida de Philip. A verdade é que ela o leva a um novo patamar da vida: a loucura. Sim, arrisco-me a usar estas palavras pelo simples facto de que alguém tão cego só poderá estar a provar uma certa loucura. O que espanta no romance é que todas as outras mulheres são tratadas com um certo desdém e altivez. O próprio Deus é posto de lado quando não cumpre com as suas obrigações. Mas tudo muda no instante em que Mildred é a única a não estar interessada em Philip. Esta mulher é uma espécie de “Embaixadora da Sofisticação” falsificada, comentando a sua classe e postura quando, em boa verdade, não passa de uma pessoa extravagante com pretensões de Senhora. Engraçado (ou desastroso) é o facto de ela nunca se afirmar como personagem. Mostra-se desinteressada por tudo. Nada lhe agrada. Por muito que o nosso herói se esforce, ela não o quer. Ela maltrata-o, desdenha o seu amor, faz pouco dele. Apenas quando precisa, e mesmo assim tudo é com a pontinha dos dedos e uma expressão de nojo, se agarra a ele tentando mostrar a sua simpatia.
No fundo, as personagens funcionam como uma só: mesmo separados, Mildred está sempre por perto. Moldando Philip, obrigando-o a pensar coisas que de outra forma não existiriam na sua cabeça. E o nosso Herói parece até apreciar essa maldade e arrogância da parte desta jovem estranha e antipática. Como se fosse um complemento à sua personalidade. O livro torna-se sujo, cinzento e feio quando aquela relação se desenvolve. A vida de Philip é minimamente apresentável quando está sozinho e demasiado estranha quando está com Mildred. E nós, ingénuos leitores, chegamos a sentir-nos traídos. A convivência entre eles é barulhenta, suja e reles. Não conseguimos sentir orgulho no rapazinho que vimos crescer e lutar pela sua vida. Mildred é a destruídora da vida. Talvez seja, até, a própria Vida. E só suspiramos de alívio quando, após umas 300 páginas, o nosso Herói, triunfante e crescido, decide escrever o final daquela controversa relação.

 

 

 

Maugham, Somerset. Servidão Humana. Lisboa: Edições Asa, 1ª edição (Novembro 2009)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

"Romance" por Clarence Brown


Capa do filme Romance (Europa)
Protagonizado por Greta Garbo e Gavin Gordon
Realizado por Clarence Brown
1930
 
Este é um daqueles filmes sagrados. Ainda hoje penso nele como um bálsamo para a alma.
Romance é um filme sobre o Amor. Onde Garbo é Diva duas vezes. Diva porque Rita Cavallini é a Diva da Ópera capaz de matar de amores corações ditos fortes e corajosos. E Diva porque prova que ser actriz é ser outra coisa mais sagrada do que a realidade da vida.
Começo pela história: temos um jovem. Na verdade existem dois. Toda a história é um flashback, uma tentativa de um velho cavalheiro em fazer o seu neto recuperar a consciência. Harry, o jovem que no presente quer casar com uma cantora e um sábio bispo que é , no passado, o jovem Tom Armstrong (Gavin Gordon). O filme recua para o momento em que Tom abomina a etérea necessidade humana em perder-se no divino. E, no instante em que tudo lhe parece real e sisudo, aparece aquela que irá transformar a sua vida. O momento em que Rita é anunciada pelo rico Cornelius Van Tuyl (Lewis Stone), o primeiro amante conhecido da cantora e uma espécie de narrador, sempre presente e a guiar-nos por esta viagem amorosa, não é o momento da sua aparição. Lembra-nos um pouco Laura ou Gilda, nos Noirs em que a estrela chega sempre atrasada quando já todos sabem que ela aí vem. Rita chega subindo a enorme escadaria num brilhante vestido, denso e comprido. De notar que este é, talvez, o grande trabalho de Adrian, o estilista que soube defender a figura de Garbo como ninguém.
Mesmo quando a Diva de Ópera chega nada é dito. Sabemos que é ela porque só ela estará no centro do Universo, rodeada de cavalheiros encantados e mulheres invejosas. Mas não estamos em vantagem face ao jovem emocionado e embriagado pela beleza de Rita. Conhecemo-la ao mesmo tempo que ele. Só temos a vantagem de não estarmos tão equivocados como ele quanto ao seu verdadeiro nome. Aliás, é através desse equívoco que todos reconhecemos a prova que faltava: aquilo que julgamos ser a verdade dos nossos corações pode facilmente ser dissipado. O momento decisivo em que os dois se conhecem é, sem dúvida, o primeiro de muitos momentos. E é sempre importante explicar que Tom se apaixona por um engano. E Rita deixa-o ir ao encontro de uma mentira brincando com ele. Ela nunca assume a sua identidade até o jovem ter a certeza que foi apanhado num deslize amoroso.Toda a narrativa evolui como se fosse encenada. Nada é subtil. Tudo é exagerado e dramático.
É nesta produção de Clarence Brown que o cinema sobre o Amor ganha novos contornos. Em que tudo é dito e retirado como se vivessemos em indecisão permanente. O desapaixonado pela vida apaixona-se perdidamente por Rita. Tudo morre para fazer nascer a loucura doentia do Amor juvenil. Mas é Rita quem toma as rédeas da relação. Porque, se por um lado, também ela se deixa envolver pela doçura da paixão, saberá, por outro, que nada é para sempre. Muitos menos quando é ela a protagonista desta história. Estamos sempre à espera que alguém morra de amor. Rita talvez tenha morrido quando, naquela imagem final, tão idêntica a Rainha Cristina, a vemos morta e fixa em sofrimento silencioso. Só nos salvamos das lágrimas porque o jovem Tom nos ajuda fechando a porta. É o reconhecimento do fracasso humano. Tom, que estava disposto a tudo por esta paixão, apercebe-se que de nada vale morrer por amor e dedica-se a sustentar apenas uma ideia desse amor.
Dou especial ênfase à realização final:  a imagem de Rita/Garbo, de pé junto à lareira, estática  e pesada. Talvez dos melhores momentos fotográficos em que, sozinha, a realização conta uma história. Uma tendência entre os realizadores que  trabalharam com Garbo : o rosto da Esfinge Sueca vale toda uma produção.
A narrativa é igual a tantas outras. Será, na verdade, uma espécie de necessidade, de ponto incontornável nos filmes de Garbo: a mulher fatal e inatingível que leva à loucura os jovens inseguros e ingénuos. Mas surpreende pela vivacidade. E, especialmente, surpreende pelo twist final: aquilo que esperávamos ouvir da boca do bispo não é aquilo que ele se prontificar a mostrar: o arrependimento de ter deixado Rita Cavallini sozinha e um amor enraivecido desvanecer surge nesta história quando esperávamos uma conclusão mais sensata. Creio que não se assemelha ao típico filme de 1930. Talvez hoje fosse um sucesso. Ou não o seria pois não teria Garbo. E um filme de Garbo sem Garbo é um filme vazio. Este é o filme em que Garbo, nomeada para um Óscar de Melhor Actriz, se revela magnífica. Romance não pretende contar uma história. Pretende ser uma explicação daquilo que Greta Garbo representa. E nem o sotaque agreste nos faz desistir. Afinal já em Flesh and the Devil vimos a verdadeira faceta da actriz. Esse filme que a lançou para o mundo das estrelas que nunca morrem. Facto é que, fechando os olhos aos agrestes conflitos entre o realizador e a estrela, Clarence Brown e Greta Garbo entendem-se e reconhecem-se quando outros ainda hoje se perguntam: Who is Garbo?

 

Talves gostassem de saber:

·         Lewis Stone já havia trabalhado com Garbo em Woman Of Affairs e , em 1932, voltam trabalharjuntos em Grand Hotel

·         Para o papel de Tom Armstrong, Garbo decidira escolher Gary Cooper. No entanto, a Warner Brothers não o pôde emprestar à MGM ficando Gavin Gordon com o papel.

·         Clarence Brown é o realizador que mais trabalhou com Garbo: Flesh and The Devil, Woman of Affairs, Romance, Anna Christie e Anna Karenina. No entanto, a relação entre os dois ficou tremida após o final de Romance e só em 1935 são propostas tréguas.

·         Adrian foi sempre o estilista de Garbo, presenteando todos os seus filmes com inovadores vestidos chegando a lançar um estilo para a imagem de Garbo.
 
Caty.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

"Entre os Actos"

Esta é a obra que Virginia Woolf nunca terminou. Morreu antes de o fazer. O marido, Leonard Woolf, publicou-a tal e qual como a encontrou. Significa que estamos a ler a obra imperfeita, aquilo que os escritores não querem mostrar ao mundo: o seu primeiro impulso.

Podemos imaginar esta obra como um teatro. Um grande teatro em véspera de estreia. Imaginemos o burburinho nos bastidores, as correrias, as conversas. Tudo começa de noite: "Era uma noite de Verão e eles estavam, na grande sala com as janelas abertas para o jardim, a falar da fossa.". Eis a nossa preparação para o grande dia. A banalidade da vida, a fossa, a noite. Tudo o que se segue é banalmente teatral.
As personagens da obra são também os actores. Interessante ponto: interpretam-se a si próprios e a outros tudo na mesma obra. Existem então três realidades em destaque nesta obra magnifica pela sua modernidade: a realidade teatralizada; a peça que é, de facto, interpretada e o próprio romance, que funciona mais como peça de teatro do que como romance.
Comecemos por salientar aquilo que nos segura (aos amantes da leitura histérica e fascinantemente interpretada): o ritmo. Digo-vos que é sublime. Só alguém muito capaz de literatura poderá escrever o ritmo brutal e alucinante desta obra. Há ritmo nos diálogos, há ritmo nas descrições. Há, até, ritmo na ausência de ritmo. Tudo é movimento, tudo exige a presença da melodia. Maravilhosamente bem escrito e estudado. Aconselho-vos a ler em voz alta as seguintes passagens (tenham em atenção que tudo o que vão ler é incrivelmente bem feito e pode suscitar um choque imenso aos que, como eu, são sempre abalrroados pela boa escrita de Woolf):

(...) que atava enrolando e enrolando e enrolando à sua volta um fio de erva muito comprido.

Vazia, vazia, vazia; silenciosa, silenciosa, silenciosa. A sala era uma concha, cantando o que havia antes de haver tempo; no coração da casa estava uma jarra – de alabastro, lisa, fria, contendo a essência imóvel e destilada do vazio: silêncio.

Tudo era tão real, tão real, que, nos painéis da porta de mogno, ela viu o Arco de Whitehall e, através do arco, a camarata, e, na camarata, a cama, e, na cama, a rapariga que gritava e batia na cara do soldado, no momento em que a porta (pois era, de facto, uma porta) se abriu e Mrs. Swithin entrou com um martelo na mão.

E é esse ritmo que irá marcar a peça que, de facto, é peça de teatro na obra. A extensa peça é escrita por Miss La Trobe (a eterna escritora desejosa de poder e fama quando, na verdade, os abomina a todos pelo que não conseguiram entender). Há palavras e música, tudo revolto numa sintonia asfixiante. Não poderia ser mais brilhante o resultado da peça dentro da peça (assustar-vos-ei ao assumir que dentro da peça que é peça existem, pelo menos, mais três peças envolvidas?). A dramaturgia acaba de ser elevada ao sublime. E é enquanto a estória se desenrola no palco emprovisado que a verdadeira história começa a ganhar contornos nitidos e claros. Isa (ou Isabelle para os ilustres desconhecidos) está doente. Doente da alma, digo. Só poderá estar. Ela sim é a verdadeira alma da obra. E só se reconhece no fim da obra. Depois do pano cair. Depois de todos os panos cairem. Ela, que se controla durante toda a obra, e que ao mesmo tempo vagueia nos seus delirios é a personagem menos visitada pela autora. Só poderia ser assim, receio. Se soubermos muito sobre esta humilde personagem vamos ambicionar amá-la e ela já é amada. Por isso, declaramos guerra a Bart e Mrs. Swithin, os velhos irmãos, não por serem almas ruins mas porque nos transportam a cada segundo para o passado frenético das suas vidas. Invocam a torto e a direito memórias que nós, interessados leitores/ouvintes, não presenciámos. São eximios nos pormenores, são claros nas paisagens. São degradantes quando nos mostram o subito interesse por reles personagens nomeadas avant-gard: Mrs. Manresa, que, segundo nos consta a meio do primeiro acto, conta caroços e usa batom vermelho. As personagens são, como é evidente em toda a obra de Virginia Woolf, individualizadas. Todas têm alguma coisa para nos dizer. Não se calam com os pormenores íntimos das suas mentes. Têm sempre alguma coisa para Ser. Ninguém, desde a criada à dona da casa, passa despercebido. Sim, Mrs. Haines (a mulher dos olhos de gansa que serve o chá como ninguém e, quando é preciso, aparece com um jogo mesquinho de palavras entre Sands e as sandes que prepara) é tão ou mais importante que Isa. Bom, talvez seja menos importante que Isa pois essa é mais importante que a própria autora. Mas até as personagens marcam o ritmo desta inovadora melodia literária: ora uma, ora outra, ora outra ainda para regressar à primeira. E, obviamente, falta Giles. O patético Giles que é sofrido e sofrimento, que adorna a obra com um cheiro ruim a amoníaco. Que idolatra a velha presunçosa dos lábios vermelhos. Como poderá Isabella, a mulher brilhante de Giles, ser feliz quando escolheu por marido aquele inutil ser que é tão ou mais infeliz do que nós leitores quando nos apercebemos do fim do livro? Notem que o meu fascinio não passa nunca por esta personagem. Não que ele seja mau ou cruel. Apenas é insipido, sempre a aparecer-nos e a mostrar-nos a sua vulgaridade.
É claro para todos os que decidirem embarcar nesta viagem a lado nenhum que a artista desta peça é Lucy, ou Mrs. Swithin, pois não queiramos ferir-lhe a moral quando o irmão, Bart, já havia ferido a sua fé. São as personagens mais deliciosas de toda a obra, sem dúvida. São almas antigas capazes de enveredar pela modernidade da vida sem se questionarem sobre o mundo. No entanto, parecem tão atentos ao mundo e às suas filosofias que nos fazem duvidar da própria sombra. Isso e tornam-nos tão obcecados pelo quadro pintado outrora para captar a essência de uma figura paterna que jamais esqueceremos a velha questão: porque não foi o cão pintado quando está lá o cavalo? Ainda por cima um cavalo com garupa fraca.
Resta-nos a peça que é peça e que sempre foi preparada desde a primeira página. O primeiro acto: uma brutalidade excêntrica de um amor impossível e uma pronuncia esquisita. Tudo muito natural. Depois, sim, a enorme escultura que é Inglaterra pelas mãos da autora e só da autora. Interessante e impossível de escapar aos olhares mais atentos: o país é sempre uma mulher. Já o era em Orlando, a mulher-homem ou o homem-mulher que é sempre uma figura demasiado feminina. A História de Inglaterra é sempre o ponto-chave da obra de Woolf. A razão por que as árvores crescem, os pássaros cantam e Lucy adormece de tempos a tempos. Este é, juntamente com o gramofone a falhar constantemente nos momentos mais inseguros da obra, o momento por que todos esperamos: as obras todas da obra fundem-se. As personagens estão todas presentes dentro e fora do palco. A magia surge no instante em que o pano cai e todos se retiram.
Em Woolf, o mundo funciona assim: tudo, até o mais simples suspiro, é motivo de dissertação. Tudo aquilo que nos é óbvio torna-se questão primeira das nossas vidas. Não se assustem: acontecer-vos-á a todos pensarem: como é possível já ter, de facto, pensado nisto e nunca ter reflectido sobre tal? Irão, como eu me senti ao ler a obra, sentir-se constrangidos pela vossa falta de noção da vida. Mas Woolf irá, sempre pela mão de Lucy (brincalhona e antiga), relembrar-vos que a vida não é eterna mas não é efemera. E Isa irá compor-vos um poema sobre isso mal desligue o telefone e o peixe esteja escolhido. E Giles nada irá fazer: a sua natureza é morta. Ao contrário da natureza de Bart que repudia o mundo por um jornal e o seu cão.
"Sou escrava do meu público" diz Miss La Trobe quando tudo corre mal e nada é dito como foi escrito. E Woolf? Será ela escrava de quem?
 
 
Woolf, Virginia. Entre os Actos. , Lisboa: Relógio d'Água Editores, Março 2012
 
 
 
Caty.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

"The Book Thief"

Liesel Meminger: "Is that your book?"
Max Vandenburg: "It wasn't always mine."

As palavras sobrevivem-nos. Os livros não são objectos. Também não são os nossos melhores amigos. Aqueles com quem partilhamos o amor pelos livros são os nossos melhores amigos. O livro é um veículo. Um caminho. Um bonito caminho. Mas um caminho. Até a um Outro.
Fazia falta um filme sobre livros. Um filme doce e bonito sobre uma das coisas mais bonitas da Humanidade: a leitura. Não um filme sobre escritores loucos, sobre um livro que tenha mudado a nossa vida. Nem sequer um filme sobre o momento mais negro da nossa Vida. Mas sobre tudo isso. Sobre o amor. O amor ao Livro: o Livro como verdade incondicional. Este é um filme sobre uma rapariga que ama a vida. Através das páginas escritas no tempo.
Guardei na memória: “Encontrar-me-ás nas palavras”. Não é isso, afinal, ler? Não se lê para passar o tempo. Não se escreve porque nos apetece dizer coisas sobre o que nos passa na cabeça. Ler e escrever é (sobre)viver. Este foi o primeiro filme sobre o Livro. Sobre o seu poder. Sobre uma rapariga que aprendeu a viver quando aprendeu a ler e a escrever. Durante duas horas e meia entramos naquela cave tão repleta de vidas escritas. Sentimos o desconforto do calor sofrido daqueles livros queimados. Sentimos o burburinho, a emoção e a comoção daquela sala decorada a livros.
Palavras faltam. Fazia falta um filme que nos dissesse o verdadeiro sentido da palavra LIVRO. A vida é bela. A sua beleza é provocada pela beleza de um livro. Mesmo quando tudo é cinzento. Mesmo quando há bombas e alarmes e caves cheias de medo da morte. Mesmo quando o momento da nossa História é o mais negro. E há um livro: Mein Kampf. Em branco. Porque também ele é um livro. E esse livro faz parte da vida. E da morte. E dos Livros.
Deixo-vos dois conselhos:
Vejam o filme. 
Leiam um livro. Ou dois. Quando o terminarem saberão que estão, finalmente, a viver.

Resta-me o fim: um livro. Seja ele qual for. Tão bom. Tão verdadeiro.





Caty.