quinta-feira, 20 de março de 2014

"August: Osage County"


Este filme, adaptado de uma consagrada obra da Broadway poderia, como muitos outros, ser um falhanço. A julgar pelos Óscares da Academia de Hollywood, os Globos de Ouro, os Bafta, os SAG Awards, entre outros, seria de esperar um total falhanço de representação, argumento e realização. Mas não.
Começa bem: Clooney é o produtor. John Wells o realizador. Chamaram o verdadeiro autor da peça (Tracy Letts) para a adaptar ao cinema. E, por fim, esperando uma agitação que salvaria o ambiente, chamaram Meryl Streep. O resultado: um grande filme.
O tema não é diferente de tantos outros. Problemas familiares. Mas, desta vez, ao jeito de comédia negra. Doença, suicídio, juventude problemática, traições, divórcios. As personagens já existem antes do filme começar, o que dá ao respeitoso argumentista um toque de genialidade. No fim do filme elas continuam a existir e sem finais felizes ou infelizes.
Dou uma especial atenção aos primeiros minutos de filme. Começa com T.S. Eliott só porque é preciso um poeta para abrir o espectáculo que se segue: “A vida é demasiado longa”. Quem o cita é Bev, o homem cansado e calmo que desaparece para um desastroso suicídio logo após nos cumprimentar. Conta uma história a uma empregada que terá sempre um papel calmo e importante durante todo o filme e, em especial, no fim. Mas é Violet, ou Meryl Streep, quem rouba o protagonismo (nesta e em todas as outras cenas). Frágil, cruel, má, sarcástica acabamos a sentir-nos constrangidos com tanta loucura e ódio ao mundo. A sua figura pálida, os cabelos curtos, o andar descoordenado relembram uns anteriores filmes como One True Thing ou Sophie’s Choice. Em todos eles vemos majestade. Neste vemos a representação levada ao extremo. Abro um parêntesis para dizer uma verdade que me anda a balouçar na mente desde que vi o filme: será possível que tenha escapado à Academia a impressionante prestação desta Dama do Cinema? Será possível que, em tantos prémios, Meryl Streep tenha ficado sempre atrás de uma interpretação que, ainda que maravilhosamente bem conseguida por parte de Cate Blanchet em Blue Jasmine, em nada se equipara a este excelente trabalho? Bem sei que Mrs. Streep já tem anos de nomeações e consagrações mas será isso motivo para a  esquecer e fechar os olhos ao seu talento natural para compreender as suas personagens?
Posso alertar-vos para o facto de existirem outras personagens. E todas elas são fortes. Existem as irmãs reprimidas, Karen e Ivy (Juliette Lewis e Julianne Nicholson), conscientes da sua falta de carinho por parte da mãe, maridos adúlteros, Bill (Ewan McGregor), que lutam para manter a ordem mental e moral de uma filha de quase quinze anos, Jean (Abigail Breslin), que pretende destruir a sua visão ingénua do mundo, existem namorados estranhos, Steve (Dermot Mulroney) e tios gentis casados com tias que erraram no passado e continuam a errar por se adorarem ouvir, Charlie e Mattie Fae (Chris Cooper e Margo Martindale). Depois existe Barbara: Julia Roberts. A filha que é demasiado parecida com a mãe para o perceber e demasiado crítica para entender a vida.
Talvez o filme tenha ganho por ter Meryl Streep e Julia Roberts como mãe e filha. A épica cena em que Roberts se atira a Streep tem tanto de cómica como de dramática. Mas deixem-me que vos diga: é aquele jantar de luto por um pai “desaparecido” a cena que dá ao filme um toque de genialidade macabra. A qualidade dos diálogos, a realização bem coordenada e inteligente e as interpretações reais daqueles actores fazem desses minutos o momento mais empolgante de todo o filme. O elenco está todo reunido e telefones tocam, pessoas dão graças e divagam, pessoas distraem-se. A tipica comédia negra, o humor subtil e disparatado. A vida tal como ela é: um excelente filme!

terça-feira, 4 de março de 2014

Servidão Humana, por Somerset Maugham


 
O título original é Of Human Bondage. Que podemos traduzir por Servidão Humana. Este é um daqueles casos em que o título, por si só, define todo o livro.
Confesso que tinha uma grande expectativa relativamente a este livro. E não me refiro ao espectacular trabalho da Asa que me “obrigou” a comprá-lo mal olhei para aquela capa tão bonita e tão arrojada. Mesmo que concluísse que este seria um livro para nunca mais ler, pelo menos, ficaria bem na estante.
De volta à história. Esta narrativa pretende ser o “Era uma vez” de Philip Carey. Demorei algum tempo até perceber o fundo desta personagem. Considerei-o, por fim, uma espécie de Herói (caso seja possível definir assim as personagens neste controverso romance). Defino-o assim porque tanto o odiei como o compreendi. Ele é arrogante, tímido, carente e indeciso. Desde o momento em que somos introduzidos na sua vida que o sabemos um pouco complexado. Tem um pé aleijado e toda a sua infância e adolescência é conduzida através desse problema. Como se fosse o pé a definir-lhe a personalidade e as acções. Este é um livro sobre a vida e sobre o “ser humano”. Existem personagens indecisas, boas, más, sossegadas, mesquinhas. A própria humanidade de Philip é questionada (e, atrevo-me a dizer, definida) pelo leitor que, como na vida real, o adora e o detesta. Reconhecemos um pouco de D. H. Lawrence em Filhos e Amantes com a realidade sempre a saltitar na nossa frente: simples e problemática.
O primeiro passo é conhecermos o seu mundo: é órfão e foi criado por um tio religioso e uma tia que merece uma certa atenção por ser simpática e moralista ao mesmo tempo. Portanto, é fácil concluir que tudo na sua ainda curta vida merece a atenção da fé, da moral, do “ser bom”. Talvez aqui, Somerset se tenha excedido (e digo-o no bom sentido: aquilo que nos acontece quando somos crianças marca-nos para sempre). Todos nós sofremos alguma humilhação na escola. Por mais insignificante que seja todos nós coramos por algum motivo. E Philip corou, chorou e nunca mais esqueceu o episódio. Quebro a rotina de contar a história por existir um momento importante que nos irá acompanhar e a Philip até ao fim do romance: o momento em que o jovem, confuso e impregnado em teorias religiosas, descobre que Deus não existe. Poderia não ter qualquer importância mas esta é a grande transformação da personagem. Se antes resolveria a sua vida com uma carreira religiosa e cega, agora não consegue evitar as necessidades da alma: a pintura e o conhecer o mundo. O antes e depois da personalidade de Philip surge com uma primeira servidão: a servidão a Deus. No entanto, esta é racional, deixando que a sua fé seja permanentemente abalada por questões lógicas e práticas: ao pedir a Deus que lhe cure o pé, através de rezas, e não vendo qualquer mudança da parte daquele a quem devota horas e esforço, decide que ele não existe
Surge-nos, finalmente, e confesso que após uma enorme espera, Mildred. Uma personagem com demasiada relevância para a sua personalidade. E questionamo-nos: como é possível que uma pessoa tão pequena tenha tanta influência na vida de Philip. A verdade é que ela o leva a um novo patamar da vida: a loucura. Sim, arrisco-me a usar estas palavras pelo simples facto de que alguém tão cego só poderá estar a provar uma certa loucura. O que espanta no romance é que todas as outras mulheres são tratadas com um certo desdém e altivez. O próprio Deus é posto de lado quando não cumpre com as suas obrigações. Mas tudo muda no instante em que Mildred é a única a não estar interessada em Philip. Esta mulher é uma espécie de “Embaixadora da Sofisticação” falsificada, comentando a sua classe e postura quando, em boa verdade, não passa de uma pessoa extravagante com pretensões de Senhora. Engraçado (ou desastroso) é o facto de ela nunca se afirmar como personagem. Mostra-se desinteressada por tudo. Nada lhe agrada. Por muito que o nosso herói se esforce, ela não o quer. Ela maltrata-o, desdenha o seu amor, faz pouco dele. Apenas quando precisa, e mesmo assim tudo é com a pontinha dos dedos e uma expressão de nojo, se agarra a ele tentando mostrar a sua simpatia.
No fundo, as personagens funcionam como uma só: mesmo separados, Mildred está sempre por perto. Moldando Philip, obrigando-o a pensar coisas que de outra forma não existiriam na sua cabeça. E o nosso Herói parece até apreciar essa maldade e arrogância da parte desta jovem estranha e antipática. Como se fosse um complemento à sua personalidade. O livro torna-se sujo, cinzento e feio quando aquela relação se desenvolve. A vida de Philip é minimamente apresentável quando está sozinho e demasiado estranha quando está com Mildred. E nós, ingénuos leitores, chegamos a sentir-nos traídos. A convivência entre eles é barulhenta, suja e reles. Não conseguimos sentir orgulho no rapazinho que vimos crescer e lutar pela sua vida. Mildred é a destruídora da vida. Talvez seja, até, a própria Vida. E só suspiramos de alívio quando, após umas 300 páginas, o nosso Herói, triunfante e crescido, decide escrever o final daquela controversa relação.

 

 

 

Maugham, Somerset. Servidão Humana. Lisboa: Edições Asa, 1ª edição (Novembro 2009)