terça-feira, 4 de março de 2014

Servidão Humana, por Somerset Maugham


 
O título original é Of Human Bondage. Que podemos traduzir por Servidão Humana. Este é um daqueles casos em que o título, por si só, define todo o livro.
Confesso que tinha uma grande expectativa relativamente a este livro. E não me refiro ao espectacular trabalho da Asa que me “obrigou” a comprá-lo mal olhei para aquela capa tão bonita e tão arrojada. Mesmo que concluísse que este seria um livro para nunca mais ler, pelo menos, ficaria bem na estante.
De volta à história. Esta narrativa pretende ser o “Era uma vez” de Philip Carey. Demorei algum tempo até perceber o fundo desta personagem. Considerei-o, por fim, uma espécie de Herói (caso seja possível definir assim as personagens neste controverso romance). Defino-o assim porque tanto o odiei como o compreendi. Ele é arrogante, tímido, carente e indeciso. Desde o momento em que somos introduzidos na sua vida que o sabemos um pouco complexado. Tem um pé aleijado e toda a sua infância e adolescência é conduzida através desse problema. Como se fosse o pé a definir-lhe a personalidade e as acções. Este é um livro sobre a vida e sobre o “ser humano”. Existem personagens indecisas, boas, más, sossegadas, mesquinhas. A própria humanidade de Philip é questionada (e, atrevo-me a dizer, definida) pelo leitor que, como na vida real, o adora e o detesta. Reconhecemos um pouco de D. H. Lawrence em Filhos e Amantes com a realidade sempre a saltitar na nossa frente: simples e problemática.
O primeiro passo é conhecermos o seu mundo: é órfão e foi criado por um tio religioso e uma tia que merece uma certa atenção por ser simpática e moralista ao mesmo tempo. Portanto, é fácil concluir que tudo na sua ainda curta vida merece a atenção da fé, da moral, do “ser bom”. Talvez aqui, Somerset se tenha excedido (e digo-o no bom sentido: aquilo que nos acontece quando somos crianças marca-nos para sempre). Todos nós sofremos alguma humilhação na escola. Por mais insignificante que seja todos nós coramos por algum motivo. E Philip corou, chorou e nunca mais esqueceu o episódio. Quebro a rotina de contar a história por existir um momento importante que nos irá acompanhar e a Philip até ao fim do romance: o momento em que o jovem, confuso e impregnado em teorias religiosas, descobre que Deus não existe. Poderia não ter qualquer importância mas esta é a grande transformação da personagem. Se antes resolveria a sua vida com uma carreira religiosa e cega, agora não consegue evitar as necessidades da alma: a pintura e o conhecer o mundo. O antes e depois da personalidade de Philip surge com uma primeira servidão: a servidão a Deus. No entanto, esta é racional, deixando que a sua fé seja permanentemente abalada por questões lógicas e práticas: ao pedir a Deus que lhe cure o pé, através de rezas, e não vendo qualquer mudança da parte daquele a quem devota horas e esforço, decide que ele não existe
Surge-nos, finalmente, e confesso que após uma enorme espera, Mildred. Uma personagem com demasiada relevância para a sua personalidade. E questionamo-nos: como é possível que uma pessoa tão pequena tenha tanta influência na vida de Philip. A verdade é que ela o leva a um novo patamar da vida: a loucura. Sim, arrisco-me a usar estas palavras pelo simples facto de que alguém tão cego só poderá estar a provar uma certa loucura. O que espanta no romance é que todas as outras mulheres são tratadas com um certo desdém e altivez. O próprio Deus é posto de lado quando não cumpre com as suas obrigações. Mas tudo muda no instante em que Mildred é a única a não estar interessada em Philip. Esta mulher é uma espécie de “Embaixadora da Sofisticação” falsificada, comentando a sua classe e postura quando, em boa verdade, não passa de uma pessoa extravagante com pretensões de Senhora. Engraçado (ou desastroso) é o facto de ela nunca se afirmar como personagem. Mostra-se desinteressada por tudo. Nada lhe agrada. Por muito que o nosso herói se esforce, ela não o quer. Ela maltrata-o, desdenha o seu amor, faz pouco dele. Apenas quando precisa, e mesmo assim tudo é com a pontinha dos dedos e uma expressão de nojo, se agarra a ele tentando mostrar a sua simpatia.
No fundo, as personagens funcionam como uma só: mesmo separados, Mildred está sempre por perto. Moldando Philip, obrigando-o a pensar coisas que de outra forma não existiriam na sua cabeça. E o nosso Herói parece até apreciar essa maldade e arrogância da parte desta jovem estranha e antipática. Como se fosse um complemento à sua personalidade. O livro torna-se sujo, cinzento e feio quando aquela relação se desenvolve. A vida de Philip é minimamente apresentável quando está sozinho e demasiado estranha quando está com Mildred. E nós, ingénuos leitores, chegamos a sentir-nos traídos. A convivência entre eles é barulhenta, suja e reles. Não conseguimos sentir orgulho no rapazinho que vimos crescer e lutar pela sua vida. Mildred é a destruídora da vida. Talvez seja, até, a própria Vida. E só suspiramos de alívio quando, após umas 300 páginas, o nosso Herói, triunfante e crescido, decide escrever o final daquela controversa relação.

 

 

 

Maugham, Somerset. Servidão Humana. Lisboa: Edições Asa, 1ª edição (Novembro 2009)

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