quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

"Entre os Actos"

Esta é a obra que Virginia Woolf nunca terminou. Morreu antes de o fazer. O marido, Leonard Woolf, publicou-a tal e qual como a encontrou. Significa que estamos a ler a obra imperfeita, aquilo que os escritores não querem mostrar ao mundo: o seu primeiro impulso.

Podemos imaginar esta obra como um teatro. Um grande teatro em véspera de estreia. Imaginemos o burburinho nos bastidores, as correrias, as conversas. Tudo começa de noite: "Era uma noite de Verão e eles estavam, na grande sala com as janelas abertas para o jardim, a falar da fossa.". Eis a nossa preparação para o grande dia. A banalidade da vida, a fossa, a noite. Tudo o que se segue é banalmente teatral.
As personagens da obra são também os actores. Interessante ponto: interpretam-se a si próprios e a outros tudo na mesma obra. Existem então três realidades em destaque nesta obra magnifica pela sua modernidade: a realidade teatralizada; a peça que é, de facto, interpretada e o próprio romance, que funciona mais como peça de teatro do que como romance.
Comecemos por salientar aquilo que nos segura (aos amantes da leitura histérica e fascinantemente interpretada): o ritmo. Digo-vos que é sublime. Só alguém muito capaz de literatura poderá escrever o ritmo brutal e alucinante desta obra. Há ritmo nos diálogos, há ritmo nas descrições. Há, até, ritmo na ausência de ritmo. Tudo é movimento, tudo exige a presença da melodia. Maravilhosamente bem escrito e estudado. Aconselho-vos a ler em voz alta as seguintes passagens (tenham em atenção que tudo o que vão ler é incrivelmente bem feito e pode suscitar um choque imenso aos que, como eu, são sempre abalrroados pela boa escrita de Woolf):

(...) que atava enrolando e enrolando e enrolando à sua volta um fio de erva muito comprido.

Vazia, vazia, vazia; silenciosa, silenciosa, silenciosa. A sala era uma concha, cantando o que havia antes de haver tempo; no coração da casa estava uma jarra – de alabastro, lisa, fria, contendo a essência imóvel e destilada do vazio: silêncio.

Tudo era tão real, tão real, que, nos painéis da porta de mogno, ela viu o Arco de Whitehall e, através do arco, a camarata, e, na camarata, a cama, e, na cama, a rapariga que gritava e batia na cara do soldado, no momento em que a porta (pois era, de facto, uma porta) se abriu e Mrs. Swithin entrou com um martelo na mão.

E é esse ritmo que irá marcar a peça que, de facto, é peça de teatro na obra. A extensa peça é escrita por Miss La Trobe (a eterna escritora desejosa de poder e fama quando, na verdade, os abomina a todos pelo que não conseguiram entender). Há palavras e música, tudo revolto numa sintonia asfixiante. Não poderia ser mais brilhante o resultado da peça dentro da peça (assustar-vos-ei ao assumir que dentro da peça que é peça existem, pelo menos, mais três peças envolvidas?). A dramaturgia acaba de ser elevada ao sublime. E é enquanto a estória se desenrola no palco emprovisado que a verdadeira história começa a ganhar contornos nitidos e claros. Isa (ou Isabelle para os ilustres desconhecidos) está doente. Doente da alma, digo. Só poderá estar. Ela sim é a verdadeira alma da obra. E só se reconhece no fim da obra. Depois do pano cair. Depois de todos os panos cairem. Ela, que se controla durante toda a obra, e que ao mesmo tempo vagueia nos seus delirios é a personagem menos visitada pela autora. Só poderia ser assim, receio. Se soubermos muito sobre esta humilde personagem vamos ambicionar amá-la e ela já é amada. Por isso, declaramos guerra a Bart e Mrs. Swithin, os velhos irmãos, não por serem almas ruins mas porque nos transportam a cada segundo para o passado frenético das suas vidas. Invocam a torto e a direito memórias que nós, interessados leitores/ouvintes, não presenciámos. São eximios nos pormenores, são claros nas paisagens. São degradantes quando nos mostram o subito interesse por reles personagens nomeadas avant-gard: Mrs. Manresa, que, segundo nos consta a meio do primeiro acto, conta caroços e usa batom vermelho. As personagens são, como é evidente em toda a obra de Virginia Woolf, individualizadas. Todas têm alguma coisa para nos dizer. Não se calam com os pormenores íntimos das suas mentes. Têm sempre alguma coisa para Ser. Ninguém, desde a criada à dona da casa, passa despercebido. Sim, Mrs. Haines (a mulher dos olhos de gansa que serve o chá como ninguém e, quando é preciso, aparece com um jogo mesquinho de palavras entre Sands e as sandes que prepara) é tão ou mais importante que Isa. Bom, talvez seja menos importante que Isa pois essa é mais importante que a própria autora. Mas até as personagens marcam o ritmo desta inovadora melodia literária: ora uma, ora outra, ora outra ainda para regressar à primeira. E, obviamente, falta Giles. O patético Giles que é sofrido e sofrimento, que adorna a obra com um cheiro ruim a amoníaco. Que idolatra a velha presunçosa dos lábios vermelhos. Como poderá Isabella, a mulher brilhante de Giles, ser feliz quando escolheu por marido aquele inutil ser que é tão ou mais infeliz do que nós leitores quando nos apercebemos do fim do livro? Notem que o meu fascinio não passa nunca por esta personagem. Não que ele seja mau ou cruel. Apenas é insipido, sempre a aparecer-nos e a mostrar-nos a sua vulgaridade.
É claro para todos os que decidirem embarcar nesta viagem a lado nenhum que a artista desta peça é Lucy, ou Mrs. Swithin, pois não queiramos ferir-lhe a moral quando o irmão, Bart, já havia ferido a sua fé. São as personagens mais deliciosas de toda a obra, sem dúvida. São almas antigas capazes de enveredar pela modernidade da vida sem se questionarem sobre o mundo. No entanto, parecem tão atentos ao mundo e às suas filosofias que nos fazem duvidar da própria sombra. Isso e tornam-nos tão obcecados pelo quadro pintado outrora para captar a essência de uma figura paterna que jamais esqueceremos a velha questão: porque não foi o cão pintado quando está lá o cavalo? Ainda por cima um cavalo com garupa fraca.
Resta-nos a peça que é peça e que sempre foi preparada desde a primeira página. O primeiro acto: uma brutalidade excêntrica de um amor impossível e uma pronuncia esquisita. Tudo muito natural. Depois, sim, a enorme escultura que é Inglaterra pelas mãos da autora e só da autora. Interessante e impossível de escapar aos olhares mais atentos: o país é sempre uma mulher. Já o era em Orlando, a mulher-homem ou o homem-mulher que é sempre uma figura demasiado feminina. A História de Inglaterra é sempre o ponto-chave da obra de Woolf. A razão por que as árvores crescem, os pássaros cantam e Lucy adormece de tempos a tempos. Este é, juntamente com o gramofone a falhar constantemente nos momentos mais inseguros da obra, o momento por que todos esperamos: as obras todas da obra fundem-se. As personagens estão todas presentes dentro e fora do palco. A magia surge no instante em que o pano cai e todos se retiram.
Em Woolf, o mundo funciona assim: tudo, até o mais simples suspiro, é motivo de dissertação. Tudo aquilo que nos é óbvio torna-se questão primeira das nossas vidas. Não se assustem: acontecer-vos-á a todos pensarem: como é possível já ter, de facto, pensado nisto e nunca ter reflectido sobre tal? Irão, como eu me senti ao ler a obra, sentir-se constrangidos pela vossa falta de noção da vida. Mas Woolf irá, sempre pela mão de Lucy (brincalhona e antiga), relembrar-vos que a vida não é eterna mas não é efemera. E Isa irá compor-vos um poema sobre isso mal desligue o telefone e o peixe esteja escolhido. E Giles nada irá fazer: a sua natureza é morta. Ao contrário da natureza de Bart que repudia o mundo por um jornal e o seu cão.
"Sou escrava do meu público" diz Miss La Trobe quando tudo corre mal e nada é dito como foi escrito. E Woolf? Será ela escrava de quem?
 
 
Woolf, Virginia. Entre os Actos. , Lisboa: Relógio d'Água Editores, Março 2012
 
 
 
Caty.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

"The Book Thief"

Liesel Meminger: "Is that your book?"
Max Vandenburg: "It wasn't always mine."

As palavras sobrevivem-nos. Os livros não são objectos. Também não são os nossos melhores amigos. Aqueles com quem partilhamos o amor pelos livros são os nossos melhores amigos. O livro é um veículo. Um caminho. Um bonito caminho. Mas um caminho. Até a um Outro.
Fazia falta um filme sobre livros. Um filme doce e bonito sobre uma das coisas mais bonitas da Humanidade: a leitura. Não um filme sobre escritores loucos, sobre um livro que tenha mudado a nossa vida. Nem sequer um filme sobre o momento mais negro da nossa Vida. Mas sobre tudo isso. Sobre o amor. O amor ao Livro: o Livro como verdade incondicional. Este é um filme sobre uma rapariga que ama a vida. Através das páginas escritas no tempo.
Guardei na memória: “Encontrar-me-ás nas palavras”. Não é isso, afinal, ler? Não se lê para passar o tempo. Não se escreve porque nos apetece dizer coisas sobre o que nos passa na cabeça. Ler e escrever é (sobre)viver. Este foi o primeiro filme sobre o Livro. Sobre o seu poder. Sobre uma rapariga que aprendeu a viver quando aprendeu a ler e a escrever. Durante duas horas e meia entramos naquela cave tão repleta de vidas escritas. Sentimos o desconforto do calor sofrido daqueles livros queimados. Sentimos o burburinho, a emoção e a comoção daquela sala decorada a livros.
Palavras faltam. Fazia falta um filme que nos dissesse o verdadeiro sentido da palavra LIVRO. A vida é bela. A sua beleza é provocada pela beleza de um livro. Mesmo quando tudo é cinzento. Mesmo quando há bombas e alarmes e caves cheias de medo da morte. Mesmo quando o momento da nossa História é o mais negro. E há um livro: Mein Kampf. Em branco. Porque também ele é um livro. E esse livro faz parte da vida. E da morte. E dos Livros.
Deixo-vos dois conselhos:
Vejam o filme. 
Leiam um livro. Ou dois. Quando o terminarem saberão que estão, finalmente, a viver.

Resta-me o fim: um livro. Seja ele qual for. Tão bom. Tão verdadeiro.





Caty.